Thursday, June 6, 2013

Estatuto do Nascituro e a Maria Estupro


A aprovação do Estatuto do Nascituro legitimará e institucionalizará a cultura de estupro em nossa sociedade. A mulher, agredida e violada, que já era culpabilizada pela perversão do outro, receberá, agora, mais um argumento para que lhe atribuam a motivação pelo crime que sofre e a punição de, não só ser obrigada a carregar por nove meses o filho que é fruto de um pesadelo, mas, também a deixar que a criança carregue o nome de seu algoz.

O que é estupro? Estupro, para a vítima, é sentir que não se possui nada: nem corpo, nem palavra, nem vontade. É sentir um intruso lhe arrombar a casa e lambuzar-se em libido enquanto esfola e macula aquilo que a ensinam, desde cedo, ser o que de mais valioso se possui. É ter nojo de olhar no espelho e sentir o vômito forçando a garganta a cada lembrança. É deixar de acreditar no amor e nas pessoas. É sentir-se Cristo, nas mãos de deus, pagando pelos pecados daquele que a viola.

Ainda assim, para os nossos governantes, isto não parece importante. Do quê importa a mulher e seus desejos; suas vontades? Do quê importa uma inocência destruída? E, quem se importa em prender criminosos como estes?

O que importa parece ser exatamente o menos importante: o fim do crime; a segurança das mulheres. No Brasil, parece que a ameaça constante da violência sexual funciona exatamente como forma de normatizar o comportamento feminino, engaiolando-as para a sua própria segurança.

_ Mulher direita não bebe; não fuma; não usa roupas curtas; não sai sozinha à noite. Quer sua integridade física? Não saia de casa. E, se seu marido usar a força para te ter sexualmente, ele está em seu direito.

Estupro não parece ser estupro a menos que a vítima esteja de burca, ao meio dia, e tenha agressões corporais que a desfigure. Mas, eu não preciso dizer isto. Todos sabemos as formas em que se expressam os discursos conservadores.

_ Ela estava gostando. Estava pedindo por isto!

O que muda com o Estatuto do Nascituro é exatamente o fato de que, por prever a “bolsa estupro” – pensão que o Estado pagará no lugar do violador –, a vítima, além de ter vontade e moralidade questionadas, passa a ser vista como “Maria Estupro”, que sai pelas madrugadas esperando um abuso sexual em seu período fértil para receber uma miséria do governo. Ou, ainda, o estuprador pode sentir-se benfeitor, espalhando filhos e distribuindo as moedas do Estado.

Nenhuma mulher merece ou deseja ser estuprada.

As deformidades sexuais veiculadas em larga escala pela internet – pornografia que engloba sexo consensual como simulacro de estupro; que apresenta o estupro propriamente dito como fetiche sexual; que apresenta sexo grupal em que cinco ou mais homens possuem apenas uma mulher, que berra, não se sabe se por dor ou prazer, até chegado o momento do êxtase (sempre masculino) em que, numa roda ou em fila indiana, disputam partes do corpo feminino para derramar a própria porra; pornografia em que o ator abusa sexualmente de uma mulher durante o sono; sites em que homens publicam fotos e vídeos deles mesmos se masturbando em mulheres que estão em transportes públicos (em plena luz do dia, provavelmente em seu caminho para o trabalho) – não são censuradas (e, quando são, isto só ocorre porque o fato alcançou proporções gigantescas e os apelos e denúncias constantes impossibilitam que o caso seja ignorado) e servem para reafirmar e naturalizar violências como formas válidas de exercício da sexualidade.

Mas, o crime é abortar o fruto de uma violência.

E, mais, não é crime ter um filho que não a inspira amor, mas asco, ao ver o rosto daquele que a fez passar por horrores indescritíveis em sua criança indesejada. Um filho que o Estado finge desejar, mas que desampara como todos os filhos da “pátria que os pariu”: os excluídos, marginalizados, moradores de rua, viciados, traficantes. O Estado proíbe o aborto para assassiná-los quando não se enquadram nos modelos sociais desejados, mas, aí, também já não há crime algum.

O Estatuto do Nascituro só leva em consideração a hipocrisia religiosa e reafirma a única função social que legitima a existência feminina em sociedades patriarcais: a maternidade. Mas, a maternidade obrigatória desloca o amor pelos filhos e o transforma em indiferença. E é sobre esta névoa que cada um dos nascituros sobreviverá. Sem escolha, a mulher se verá aprisionada para sempre às lágrimas e dores da violência. Mas, elas devem se alegrar: em troca deste sofrimento, receberão estigma social e uma esmola do Estado.

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