Sonhei. E o meu sonho reviveu
demônios que eu gostaria de ter esquecido ou superado. Por mais que a minha
ideologia diga que não, eu ainda me sinto responsável pelo que aconteceu. Culpada
por não ter percebido as nuances de uma personalidade deturpada e ter me
entregue a ela. Não. Esta não é uma história de amor.
Eu andava atordoada, pelas ruas.
Deveria ter os mesmos vinte e cinco anos que carrego nos ombros. Vinte e cinco
anos bem mais pesados que a maioria das mulheres de minha condição social. Sentia
borboletas no estômago. Uma vontade louca de esvaziar as entranhas em vômito.
Não havia nada. Eu estava vazia.
Andava de mãos dadas com o
desespero, sabendo que eu havia de fazer alguma coisa. Aquilo que, há meia
década, eu havia preterido. Tinha medo. Medo das escolhas que fiz. Medo da
minha covardia. Tinha a noção de que, agora, eu era outra: mais forte; mais
dura. Mais amarga.
Entrei em uma casa e perguntei o
que deveria fazer para denunciar um homem que tentara estuprar uma menor de
idade. Mandaram que eu me sentasse.
Apareceu uma mulher baixa, de
formas redondas e cabelos loiros. Parecia rocha. Como eu, ela havia endurecido,
talvez, também tivesse desistido dos seres humanos, depois de ouvir
repetidamente denuncias de demônios na forma humana. Ela se sentou atrás de um
computador e perguntou o que eu gostaria de denunciar. Suspirei.
Era complicado. Era o mesmo homem
que havia me violentado, há quase seis anos. Ele, que me dizia palavras doces e
tocava canções de amor. Ele me levava aos bares e lanchonetes e me tratava com
afeto. Um afeto alheio ao mundo que eu conhecia. Não demorei a me ver
apaixonada. Não demorei a escolhê-lo como centro do meu universo. Mas, o que
era pérolas, também era dor. A dor surda e aguda de quem sabe amar mais do que
é amada. Ele me feriu vez após vez, antes que eu percebesse que não era o
príncipe, mas o dragão, quem eu levava à minha cama.
Machismo, hipocrisia, duplo
padrão. Tudo escondido pela névoa do coração que acelera em sua presença. Eu
tentava ser melhor por ele. Parei de fumar, de beber muito, de ver meus amigos.
Era ele e só ele quem regia o meu mundo.
Mas a dor sobrepôs-se ao afeto.
Negligenciada, perdida, sozinha. Procurando dores que fossem mais intensas que
a do meu coração partido. Foi quando o deixei partir. E, ele, como quem não
aceita a rejeição, pôs-se a esfolar meu corpo, a fazer brotar sangue dos meus
orifícios e lágrimas dos meus olhos. Ele havia me submetido durante o sono. E
seu fantasma sempre voltava da mesma forma. Eu estava de bruços. Gritava,
chorava, me debatia. Não havia quem ouvisse meu desespero. Ele tocou o meu
rosto com os dedos que dedilharam aquelas lindas canções de amor. Ele sentiu o
rosto alagado de lágrimas. Ele ouvia o meu desespero. Ainda assim, apontou a
carne dura e pulsante para o meu corpo e me sodomizou, enquanto eu enterrava
sentimentos e ingenuidade.
Quando ele se foi, eu era um saco
em forma humana. Jogada, preterida, sem valor. Sem alma. Demorei a conseguir
ficar sobre as próprias pernas. E, não haviam feridas externas. Ele atacara
apenas os meus buracos e cavara outros, em alma e coração. Olhei meu rosto no
espelho e tive nojo. Vomitei ao ver que eu existia. E quis morrer.
Me afoguei em álcool e cigarros.
Por dias, meses, anos. Eu era o ébrio. Eu era qualquer merda que me impedisse
de sentir. Eu era o espectro da dor.
Meus amigos não acreditaram em
mim. Ninguém acreditaria. Pensava em denunciá-lo, mas, falar sobre aquilo me
fazia engolir vômito a seco.
Passei a morrer no silêncio que
mantive. E morria mais a cada vez que o via de mãos dadas com outra menina. Eu
era responsável por cada vítima que ele fizesse. Eu poderia tê-lo feito parar,
mas não o fiz.
No sonho, contava a história com
os olhos secos e atordoados. Ele rodeava a minha família. Minha prima. Tocava
as mesmas músicas, sorria com a mesma calma. E me olhava os olhos, como se nada
tivesse acontecido. Ninguém acreditara em mim. Nem minha família, nem a mulher
loira. Agora, já não havia a prova de sangue vertido pelas suas células.
Voltava sabendo que também era
vilã pelo egoísmo de não querer reviver sofrimento, permitindo que tantas
outras passassem pelo mesmo. O telefone tocara. Ao fundo, uma voz trêmula, de
menina, dizia “Você estava certa”.
Acordei com a mesma certeza de
sempre: sou culpada do meu medo. E, a vontade de esquecer é o que mantém tudo
tão vivo e pulsante em minha mente.
Por mais que eu prefira dizer que
não, esta é uma história real. Uma história de culpa. Mas, não, nunca me diga
que é uma história de amor.