A agulha da vitrola rebolava
caprichosamente pelo disco de vinil, deixando escapar ruídos e o blues
melancólico escondido por trás de todo som de contrabaixo. A música que ecoava
pelo quarto era “love of my live”, do “Queen”. Lisa pensava em como as
gravações digitais haviam preterido aquele som que lhe embalava tão perfeitamente.
Olhou para a cama e pegou o laptop e o colocou sobre os joelhos, ainda sentada
no chão. Acendeu um cigarro.
O cursor a desafiava, piscando
solitário em um documento do word vazio. Havia meses desde que vencera a
batalha contra a folha em branco, pela última vez. Sentia-se abandonada pelas
palavras, suas velhas e únicas companheiras, desde sempre. Sorriu amarelo e se
lembrou de quando ainda era pequena demais para escrever suas próprias
histórias; de quando as inventava e contava para si própria, todas as noites,
antes de adormecer na paz que só as crianças conhecem. Era a sua forma de
fazê-las eternas. Como poderia ter perdido algo que parecia ser mais parte de
si que o próprio corpo que a constituía?
Os pensamentos cessaram junto com
o movimento da agulha, então Lisa se levantou e trocou o lado de seu LP. Pousou
a agulha com a sutileza das nuvens, que bailam no céu azul em dias ensolarados,
e voltou a recostar-se na parede gelada. Ela olhava fixo para a tela. Estava imóvel;
hipnotizada. Que diabos havia mudado em si?
Olhou para o disco de vinil,
quebrando o transe. E se pegou cantarolando uma das mais belas músicas que
conhecia. Olhava as rotações, enquanto as notas eram arrancadas sutilmente pela
agulha, firme e hesitante. E abandonou a obrigação dos parágrafos, sorriu
sincero e acendeu um outro cigarro.
Os dedos de Lisa iam de encontro
a sua boca e repousavam em sua coxa, amarelados pelo excesso de nicotina e
escondidos pela nuvem de fumaça que a envolvia. Foi aí que percebeu que ela não
estava só envolta nesta névoa, mas que cada silêncio que cantava junto à
melodia de seu disco de vinil era poesia. A poesia que havia se escondido, na
época em que ainda possuía tempo para inventar que era protagonista de seus
contos de fada. E se sentiu no paraíso por poder ter uma hora e meia, perdidas
na madrugada, para pensar e viver dentro de si. Então, ela tomou o computador
ao colo e começou a relatar sua aventura, em terceira pessoa.
Lisa sentiu uma lágrima seca em
seu olho esquerdo, quando viu-se rodeada de palavras. A folha escrita até o
fim, com qualquer coisa que começava com “A agulha da vitrola rebolava caprichosamente
pelo disco de vinil...”. Só então, deitou-se para sonhar que era princesa em um
mundo cinzento, em que tudo o que tocava, virava flores.